Entrevista


Entrevista com Gilles Brougère sobre o aprendizado do brincar

Filósofo francês explica que o jogo é uma construção social que deve ser estruturada desde cedo. E o professor pode enriquecer essa experiência
GILLES BROUGÈRE "O brincar tem de se desenvolver em aberto, com possibilidades variadas. Quando todos sabem quem vai ganhar, deixa de ser um jogo."
Foto: Marina Piedade
Sob o olhar de um educador atencioso, as brincadeiras infantis revelam um conteúdo riquíssimo, que pode ser usado para estimular o aprendizado. Gilles Brougère, um dos maiores especialistas em brinquedos e jogos na atualidade, entrou nesse universo totalmente por acaso. Desde o fim da década de 1970, o tema tornou-se objeto de estudo no grupo de pesquisadores em que ele atuava. Como na época não existiam investigações sobre a temática, Brougère vislumbrou o muito que havia para ser feito.
Desde então, ele pesquisa a cultura lúdica da perspectiva da sociedade na qual cada criança está inserida. É o contexto social, diz ele, que determina quais serão as brincadeiras escolhidas e o modo como elas serão realizadas.
Seus estudos indicam que os pequenos se baseiam na realidade imediata para criar um universo alternativo, que ele batizou de segundo grau e no qual o faz de conta reina absoluto. Graças a um acordo entre os participantes - mesmo os muito pequenos -, todos sabem que aquilo é "de brincadeira". Por isso, fica fácil decidir quando parar. Pelo mesmo motivo, um jogo não pode ser nem muito entediante nem muito desafiante ao ponto de provocar ansiedade.
No final de 2009, Brougère esteve no Brasil e conversou com NOVA ESCOLA, inclusive sobre a relação do brincar com a violência.

Quais são as características básicas da brincadeira?

GILLES BROUGÈRE A primeira característica é a que se refere ao faz de conta. É o que eu chamo de segundo grau. Toda brincadeira começa com uma referência a algo que existe de verdade. Depois, essa realidade é transformada para ganhar outro significado. A criança assume um papel num mundo alternativo, onde as coisas não são de verdade, pois existe um acordo que diz "não estamos brigando, mas fazendo de conta que estamos lutando". A segunda característica é a decisão. Como tudo se dá num universo que não existe ou com o qual só os jogadores estão de acordo que exista, no momento em que eles param de decidir, tudo para. É a combinação entre o segundo grau e a decisão que forma o núcleo essencial da brincadeira. A esses dois elementos, podemos acrescentar outros três. Para começar, é preciso conhecer as regras e outras formas de organização do jogo. Além disso, o brincar tem um caráter frívolo, ou seja, é uma ação sem consequências ou com consequências minimizadas, justamente porque é "de brincadeira". Por fim, há o aspecto da incerteza, pois o brincar tem de se desenvolver em aberto, com possibilidades variadas. Quando todos sabem quem vai ganhar, deixa de ser um jogo (e, nesse ponto, é o contrário de uma peça de teatro, que também é "de brincadeira", mas que sabemos como acaba).

O tema de sua pesquisa é a relação da brincadeira com a cultura lúdica. Como definir esse conceito?

BROUGÈRE A cultura lúdica são todos os elementos da vida e todos os recursos à disposição das crianças que permitem construir esse segundo grau. Ela não existe isoladamente. Quando a criança atua no segundo grau, mantém a relação com a realidade (o primeiro grau), pois usa aspectos da vida cotidiana para estabelecer uma relação entre a brincadeira e a cultura local num sentido bem amplo. Depois, os pequenos desenvolvem essa cultura lúdica, que inclui os jeitos de fazer, as regras e os hábitos para construir a brincadeira. Um bom exemplo são as músicas cantadas antes de começar uma brincadeira no pátio da escola.

Essa cultura, portanto, é individual ou compartilhada? BROUGÈRE Ambos. Como toda cultura, ela se refere ao que é compartilhado e é isso que permite que uma criança brinque com outras. Cultura, numa definição muito rápida, é "tudo aquilo que compartilhamos". Então, para compartilhar uma brincadeira, é preciso ter uma cultura compartilhada. Ao mesmo tempo, porém, é preciso entender que cada criança, em função de sua história de vida, tem um jeito particular de lidar com as brincadeiras. Às vezes, ela conhece alguns jogos, mas não outros. Por isso, posso afirmar que existe também uma individualização dessa cultura, já que nem todos compartilham todos os elementos da cultura lúdica de uma geração. Alguns jogam videogames que outros nem conhecem. Da mesma forma, há diferenças entre as brincadeiras de meninas e de meninos. A cultura lúdica é a soma de tudo isso, considerando o resultado da vida de cada um. O fato é que a experiência lúdica não é a mesma para todas as crianças
Um jogo pode mudar conforme a sociedade ou a região. Como abordar essas diferenças? BROUGÈRE É verdade que existe uma dimensão local da cultura. Muitas crianças jogam bola de gude - e em lugares diferentes as regras podem ser totalmente diversas. Em alguns locais, desenvolve-se um jeito específico de pular corda. Não há dúvida de que os jogos se adaptam ao contexto, aos hábitos, aos interesses e ao material disponível.

É por isso que se diz que a criança aprende a brincar?

BROUGÈRE Sim. A brincadeira não é inata. Mesmo que tenha elementos naturais, ela sempre é o resultado de uma construção social. É algo que se aprende e se estrutura desde muito cedo, muitas vezes entre mãe e filho. É provável que a criança aprenda o "de brincadeira", o segundo grau, nas próprias brincadeiras. Toda criança descobre rapidamente que no esconde-esconde o desaparecimento não é real. Afinal, reaparecemos depois. Quando ela é capaz de fazer o mesmo, ainda que seja de maneira desajeitada, aprendeu a brincar. Mas é preciso entender que algumas crianças não aprendem isso, o que faz com que tenham dificuldade para estar no segundo grau. Se não aprendem a dizer "é de brincadeira, é só faz de conta", não conseguem entrar em nenhum jogo. Tanto é assim que falamos que "essa criança não sabe brincar" justamente porque não entra no universo do faz de conta. Depois dessa aprendizagem básica do brincar, os pequenos aprendem os mecanismos, os ritos e as tradições de um pátio, de um espaço para jogar. E em seguida vêm as aprendizagens secundárias: aprender a jogar futebol, aprender a jogar determinado videogame.

Então, primeiro a criança tem de entender o que é brincar? BROUGÈRE
Não diria que ela tem de entender, pois não tenho certeza de que a criança precise de clareza sobre esse processo. Usar o verbo entender significa pensar que um jogo só pode ser jogado quando há um nível de reflexão elaborado. E, obviamente, não é possível ter certeza de que a criança faz essa reflexão, pois não há como questioná-la sobre isso, uma vez que é nova demais. O que realmente importa é ela entrar nesse universo de faz de conta e sentir o prazer que ele proporciona. Há teorias sobre a excitação ou a emoção que o lazer (e, mais especificamente, o jogo) produz. Quando as crianças são bem estimuladas, mostram isso claramente. Se elas entendem? Não sei, mas acho provável que o domínio do segundo grau venha antes dessa compreensão. As crianças brincam antes mesmo de entender o que estão fazendo. Elas percebem e atuam antes de entender o significado de suas ações e de poder refletir sobre elas.


O jogo muda naturalmente à medida que a criança se desenvolve?

BROUGÈRE Sim. No começo, tudo se dá no nível da experiência. Mas, como em toda atividade humana, ocorre o enriquecimento por experiência. Quanto mais a criança adquire vivências, mais é capaz de fazer novas atividades (e perde o interesse por outras). É possível analisar isso com base na teoria do fluxo ou da experiência ótima. No jogo, os pequenos procuram estar em equilíbrio, evitando o tédio - se acham chato, não jogam mais - e a ansiedade - tarefas difíceis demais também são abandonadas. Se o desafio é demasiado, gera ansiedade. A criança desiste dizendo que aquele jogo é ruim e, com isso, evita ficar em dificuldade. O jogo envolve essa busca de equilíbrio. É uma atividade em que há desafio, mas um desafio acessível. Em função da experiência e também das competências, cada criança é capaz de dominar certas situações e, assim, administrar essa distância entre o tédio e a ansiedade. A isso se soma a dimensão social. São os momentos de encontro com outras crianças ou, às vezes, adultos. É comum adaptar as regras de um jogo para adultos só para permitir que os pequenos participem também. Finalmente, outro elemento se revela por meio do jogo: a criança mostra quem é. O jogo é um indicador, uma maneira de mostrar a si mesmo e aos outros que aquele pequeno já cresceu.


O que a escola pode fazer para enriquecer o brincar?
BROUGÈRE Acredito que a primeira atitude a tomar é observar. Sem a observação, o enriquecimento não é possível porque não há conhecimento suficiente para tanto. Depois disso, é interessante refletir sobre a qualidade dos espaços destinados às brincadeiras, sejam eles externos ou internos. Outra reflexão importante é sobre como o professor pode favorecer esse enriquecimento. O professor deve ficar de fora da brincadeira? Em que casos pode intervir ou participar do jogo? Não há uma verdade única para essas questões. Tudo depende da percepção do educador, da idade das crianças, das circunstâncias e das condições da escola. Se em algum momento o professor sente que deve propor uma ideia ou indicar o uso de um material capaz de deixar a brincadeira mais interessante, ele não deve se privar disso - desde que tenha em mente que não se trata de obrigar as crianças.

Que intervenção positiva de um professor é um bom exemplo?
BROUGÈRE Uma colega relatou em um livro uma atividade em que crianças faziam um percurso de bolas de gude com pedaços de madeira. Durante o jogo, o professor percebeu que seria uma pena perder todo aquele esquema montado. Então, ele sugeriu que as crianças registrassem o percurso para poder reconstituí-lo no futuro. E todos aceitaram a proposta com entusiasmo. Ao propor um novo desafio que não fazia parte do jogo, o educador auxiliou a garotada a progredir. E, como as crianças estavam felizes pelo que haviam feito, guardar o registro foi uma forma de valorizar ainda mais o que tinham construído. O papel do professor é propor novas atividades que se baseiam num jogo ou que podem alimentá-lo. Outro bom caminho é propor uma roda de conversa depois de um jogo para que as crianças falem sobre o que aconteceu, sobre o que observaram. Isso não faz parte do jogo em si, mas valoriza o ato de jogar.


Qual sua opinião sobre a escola oferecer brinquedos de alguma forma ligados à violência, como soldados?
BROUGÈRE Como regra geral, sou contra. E acho que essa é a realidade em quase todos os países. Meus estudos mostram que geralmente predomina a cautela em relação ao que se associa à guerra. Mas há exceções. Lembro que, na Polônia, ninguém evitava os brinquedos de guerra. Lá, eles eram considerados bons porque foi a guerra que permitiu libertar o país da opressão do nazismo. Da mesma forma, acho razoável o movimento contra os brinquedos da moda, ligados à globalização dos mercados ou a determinadas marcas, em detrimento de brinquedos tradicionais, presentes na sociedade há várias gerações. Sou favorável a esse movimento de valorizar os jogos em que as crianças são personagens, atores, e deixar em segundo plano os brinquedos em que elas têm de atuar como diretores. Não quero dizer que esses jogos não têm nada de interessante, mas acho que os primeiros são melhores para o desenvolvimento cognitivo infantil. Os professores precisam estar à vontade com o material à disposição em sala de aula e usá-los para enriquecer a experiência lúdica das crianças.

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Anne-Marie Chartier destaca a importância da prática para a formação de professores

Pesquisadora francesa fala sobre a natureza do professor alfabetizador e explica por que é fundamental encontrar o equilíbrio entre teoria e prática

 Anne-Marie Chartier investiga a evolução das práticas e dos materiais didáticos empregados no ensino da leitura e da escrita. Os resultados de seus estudos como pesquisadora do Serviço de História da Educação do Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica, em Paris, lhe permitem afirmar, por exemplo, que as anotações feitas por um docente durante o trabalho, quando analisadas sistematicamente, são fundamentais para o replanejamento constante das aulas.
Essa análise somente faz sentido se houver conhecimento científico sobre a Pedagogia. Anne-Marie defende que o educador precisa saber relacionar a base teórica ao seu dia a dia para ensinar bem e alcançar bons resultados escolares.
Nesta entrevista, ela fala também sobre como a presença feminina nas salas de aula altera, curiosamente, o ensino da leitura. E traça um paralelo entre as realidades educacionais do Brasil e da França, com destaque para mudanças recentes no sistema francês de formação inicial dos professores.

Um professor é capaz de alfabetizar somente com base na experiência adquirida em sala de aula?
ANNE-MARIE CHARTIER Durante o século 20, os professores formados em escolas normais ensinaram milhões de crianças a ler e a escrever apenas com base nos chamados saberes de ação, adquiridos primeiro em estágios nas escolas de aplicação anexas às escolas normais e, em seguida, pela interação com seus pares - uma estratégia eficiente ainda hoje. Eles não tinham conhecimentos teóricos da Linguística, da Psicologia, da Sociologia ou da Didática. Hoje, é indispensável dominar esses conteúdos. Por meio deles, os professores adquirem a capacidade de análise que lhes permite discutir a própria ação. Dessa forma, eles podem tirar proveito dos materiais escritos por outros professores e das pesquisas na área para formar, de fato, verdadeiros usuários da leitura e da escrita.
Qual a diferença entre saberes científicos e saberes da ação?
ANNE-MARIE Para se formar e poder exercer bem a sua profissão, um médico precisa dominar os saberes científicos, obtidos no curso universitário, e os saberes da ação, aprendidos durante o trabalho em hospitais. Ali, ele compartilha com médicos e enfermeiros o atendimento a pacientes. Se ele tiver somente o saber científico, pode até se tornar um bom conhecedor da medicina, mas jamais será um bom médico. Com os professores, ocorre situação semelhante. Ou seja, sem a prática, o educador não será eficiente em sala de aula.
É a combinação desses saberes que ajuda a elevar os resultados escolares das crianças?
ANNE-MARIE Sim. Mas, antes de tudo, é preciso distinguir resultados de avaliações padronizadas, como o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) e a Prova Brasil, e resultados obtidos por meio da prática em sala, com a equipe docente da escola. Os primeiros servem para que o governo conduza as políticas públicas. E são, naturalmente, indutores curriculares. Os professores podem, assim, situar a escola em relação à média. E é importante ressaltar que as secretarias precisam ficar atentas também aos conteúdos não contemplados nesse tipo de prova. Avaliações de sistema, porém, não dizem ao professor como fazer as escolhas pedagógicas mais urgentes. Isso só se consegue por meio de um acompanhamento atento das crianças e de seus progressos e suas dificuldades. É nesse ponto que saberes científicos e saberes de ação trabalham juntos pela aprendizagem.
Como deve ser feito o acompanhamento das crianças?
ANNE-MARIE Peça a um iniciante que escreva sobre sua prática e selecione as ações que considera mais importantes. Ao se expressar, ele se torna consciente de sua evolução. No caso dos professores mais experientes, essa autoanálise é muitas vezes uma forma de dar um passo atrás para reparar hábitos inconscientes, já incorporados à rotina. Além disso, na vida cotidiana da classe, produzimos muitas escritas que, se capitalizadas, viram suporte para a memória e para o replanejamento. Refiro-me ao planejamento da semana, aos registros individuais com os resultados dos alunos, às anotações nos boletins, às tabelas de progressão, às fotos ou aos textos fixados na sala. Esses documentos são aparentemente incompletos e díspares. Mas, quando analisadas de maneira sistemática, as escritas do professor revelam precisamente a situação dos alunos. Mostram o que eles aprenderam e o que ainda precisam aprender. Sempre encorajo os professores a não jogar fora esses registros, mesmo os escritos em estilo telegráfico. O computador também pode ajudar a organizar esses arquivos.
Como um professor alfabetizador deve atualizar suas competências?
ANNE-MARIE As competências escolares se formam ao longo da história, o que não significa que elas mudam a cada ano letivo. É preciso compreender de que maneira elas afetam o ensino e entender até que ponto aquilo que orientava professores de uma geração continua útil ou não para a geração seguinte. As escritas de caligrafia, por exemplo, foram essenciais nos tempos da correspondência manuscrita. Ler em voz alta, por sua vez, era uma prática social generalizada quando os idosos ainda liam mal ou não havia óculos. Hoje, é evidente que as tecnologias digitais estão provocando transformações no processo de leitura e escrita. Mas essas práticas que mencionei vão coexistir e é necessário continuar o que sabemos fazer bem: ler em voz alta, por exemplo, é e será sempre muito útil para introduzir a literatura no universo infantil. Em última instância, o que visamos é a leitura autônoma, silenciosa, que permite pesquisar informações de todos os gêneros que estejam armazenadas em qualquer base de dados.
Como um docente pode despertar no aluno o desejo de saber ler?
ANNE-MARIE Costuma-se dizer que é preciso "dar" o desejo de ler às crianças, como se isso fosse possível. O desejo se constrói, se conduz, talvez. O que se pode dar são bons exemplos do encanto que a leitura pode causar nas pessoas. A sociabilidade da leitura atrai os pequenos. Com ela, as crianças aprendem a aceitar as diferenças ao notar que nem todos apreciam as mesmas coisas.
Qual a importância dos textos informativos na alfabetização inicial?
ANNE-MARIE Até o século 19, mostravam-se apenas livros de imagens para as crianças. Nas últimas décadas, se compreendeu que é importante ler histórias de ficção desde os primeiros anos de escolarização. Na França, porém, houve um excesso desse imaginário devido à presença de uma cultura feminina nas salas de aula, que torna onipresente o modelo de contar histórias. Faltam hoje as práticas de leitura informativa. E já há bons livros de introdução à Ciência.
Quer dizer que as mulheres interferem no ensino da leitura diferentemente dos homens?
ANNE-MARIE Há um poder exagerado da cultura feminina na escola. A maioria das histórias contadas na Educação Infantil é ficcional. Os livros que contam histórias realistas ou documentais são praticamente deixados de lado. O caminho é alcançar um equilíbrio. E isso só se faz incluindo livros desse tipo desde a Educação Infantil, sobretudo hoje, quando a dimensão da formação científica - com a internet e a televisão - é tão evidente. Os meninos adorariam ler sobre como funciona um trator ou como um vulcão entra em erupção. E eu tenho certeza de que as meninas também.
Que influência os materiais didáticos exercem sobre a atuação dos professores em sala?
ANNE-MARIE Todos os materiais didáticos são bons indicadores do desenvolvimento escolar. A penetração dos cadernos nas escolas no século 19 ou a introdução da calculadora nas aulas de Matemática no século 20 são exemplos da maneira como a Educação se vale dos materiais disponíveis na sociedade. Hoje, por exemplo, uma das grandes questões diz respeito ao uso das tecnologias em sala de aula. Primeiro, é preciso pensar o que isso provoca na escola porque os computadores podem causar uma grande revolução na maneira de ensinar e aprender a ler e a escrever.
E os livros didáticos? Como devemos escolhê-los?
ANNE-MARIE Eles devem satisfazer a duas exigências contraditórias: ser fácil de usar, tanto para o professor como para o aluno, e não reduzir a aprendizagem a baterias de exercícios padronizados que forçam um caminho predeterminado. É por isso que alguns professores ainda preferem livros antigos, que eles conhecem bem. De qualquer forma, não se pode esperar de um livro mais do que ele pode oferecer. Ele é apenas um dos recursos disponíveis.
A formação inicial de professores na França está passando por mudanças. Quais são elas?
ANNE-MARIE O sistema todo está mudando. Até o ano passado, os professores de Educação Infantil e das séries iniciais do Ensino Fundamental eram selecionados entre os que possuíam diploma universitário, em qualquer especialidade. Nos Institutos Universitários de Formação de Professores, preparavam-se concursos regionais com provas escritas para avaliar os conhecimentos dos candidatos em Francês e em Matemática. Aqueles que eram aprovados na primeira etapa passavam por um exame oral sobre as demais disciplinas, os fundamentos pedagógicos e outras questões postas em debate - como o fracasso escolar, a leitura e as políticas públicas. Os aprovados ingressavam no instituto como estagiários e trabalhavam em várias escolas - incluindo um período obrigatório de estágio no ciclo de alfabetização. A reforma em curso vai eliminar aos poucos esses institutos e é a universidade que vai suportar a formação inicial. A parte acadêmica deve aumentar e os estágios supervisionados certamente terão sua carga horária reduzida, senão suprimida.
Isso é bom ou ruim?
ANNE-MARIE Na minha opinião, é grave. Mas há dois fatores importantes a considerar. Hoje, para ser professor em qualquer segmento na França, passou-se a exigir mestrado. Isso diz respeito à legitimidade social do papel do educador. Para ensinar, o professor deve ter o nível mais elevado de qualificação entre todas as camadas da população. E o nível de escolarização geral na França está aumentando. Portanto, a escolarização dos professores também deve aumentar. O segundo ponto é a formação continuada. Além de deter o conhecimento difundido nas universidades, é preciso saber como levá-los para a prática. A formação profissional exige essa troca diária de informações. E isso começa nos estágios. A prática, portanto, é fundamental. A dimensão do trabalho na escola só pode ser avaliada com os colegas e os alunos.
Que diferenças é possível observar entre a formação inicial na França e no Brasil?
ANNE-MARIE A diferença não está na formação, mas nos meios que dão acesso a ela. No Brasil, muitos dos que visam a licenciatura em Pedagogia não querem mais que um diploma - e algumas universidades privadas fazem comércio desse tipo de certificação. Na França, esse fenômeno não existe e os concursos para ingresso no Ensino Superior são muito seletivos. Inversamente, e reconhecidos os desafios educacionais que os brasileiros têm pela frente, a condição tem melhorado muito desde a minha primeira viagem ao país, há 25 anos. Talvez seja por isso que eu encontre mais entusiasmo aqui do que na França, onde os professores vivem hoje inquietos em relação ao futuro. Quando venho ao Brasil, recupero meu otimismo!

Comentário: Anne-Marie Chartier, fala sobre uma questão bastante discutida em todos os tempos, em que ainda é difícil relacionar a prática com a teoria, porém de extrema importância. Outra boa discussão é sobre a alfabetização de que forma desenvolvê-la tendo em consideração as mudanças, e a comunidade em que a escola está inserida.

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Para a escritora Tatiana Belinky, o livro é um objeto mágico

Segundo a autora, cabe tudo dentro dele: castelos, florestas, cidades inteiras!

A história de vida de Tatiana Belinky é tão emocionante quanto os livros que ela escreve para as crianças. Nascida na Rússia, poliglota e escritora desde sempre, chegou ao Brasil aos 10 anos, fugindo com a família das mazelas da guerra civil provocada pela revolução comunista que, em 1917, fez nascer a antiga União Soviética. Seu primeiro livro infantil, Limeriques (Ed. FTD), foi publicado em 1987. Hoje, ela continua escrevendo - à mão, com uma caligrafia que não envelhece com o passar do tempo
Como estimular a leitura entre crianças de até 3 anos?
TATIANA BELINKY Não fico me preocupando com idade. Escrevo o que me dá vontade naquele dia, e a faixa etária que me escolha. Mas o fundamental é ler histórias,
ter sempre muitos livros por perto e cantar. Música é fundamental, mas tem de ser de qualidade. É por isso que, no mundo inteiro, existem as músicas de acalanto. Elas são feitas para assustar, mas a letra não importa. A criança ouve o acalanto, depois a voz da mamãe e, em seguida, dorme muito bem.
Qual é o significado da fantasia no universo da criança?
TATIANA A fantasia é tudo. Sempre digo aos pequenos que o livro é um objeto mágico, muito maior por dentro do que por fora. Por fora, ele tem a dimensão real, mas
dentro dele cabe um castelo, uma floresta, uma cidade inteira... Um livro a gente pode levar para qualquer lugar. E com ele se leva tudo.
Por que os contos acumulativos - aqueles em que, sucessivamente, se vão acrescentando novos elementos - funcionam tão bem com os bebês?
TATIANA Todo mundo gosta de repetição, inclusive as crianças, porque fica mais fácil de memorizar. Quem gosta demais de alguma coisa sempre quer experimentá-la de novo. Isso vale para tudo: do prato que você não se cansa de pedir no restaurante ao livro que a gente lê e relê inúmeras vezes.
Livro infantil que se preza deve ter "moral da história"?
TATIANA Não gosto disso. Uma vez, a dona Benta contou uma história cuja moral era "fazer o bem sem olhar a quem". A Emília discordou: "Para os maus, pau!". Que me desculpe a Capitu (personagem do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis), mas a Emília é a mulher mais inteligente do Brasil! E, além de tudo, é mágica! Eu queria ser mágica. Queria ser uma bruxa. Mas bruxa bonita, como a madrasta da Branca de Neve.


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